O cargo de Procurador-Geral da República e imperisiodade de sua democratização

 

Marcelo José Guimarães e Moraes e
Manoel Veridiano

Sabe-se que o Ministério Público, conforme o ordenamento constitucional brasileiro, encontra-se dividido em dois grandes ramos, especificamente o Ministério Público da União e o Ministério Público dos Estados. Por sua vez, esses ramos são integrados por suas carreiras. O primeiro é integrado pelos: a) Ministério Público do Distrito Federal e Territórios; b) Ministério Público Federal; c) Ministério Público Militar; d) Ministério Público do Trabalho. Por sua vez, cada Estado da Federação possui o correspondente Ministério Público Estadual. Essa é a intelecção do artigo 128, inciso I e alíneas da Constituição de 1988.


A ramificação ministerial ocorre em razão da necessidade de divisão de atribuições, tendo em vista as inúmeras missões constitucionais assumidas em um território nacional de dimensões continentais. Busca-se, com isso, permitir uma atuação mais eficiente na distribuição da Justiça. Não há, entretanto, e isso é pacífico, qualquer hierarquia entre esses ramos do Ministério Público, como já assentado pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, no julgamento do RE 593.727/MG, em 2015, muito embora o Ministério Público seja regido pela unidade, conforme artigo 127, parágrafo 1º, da Constituição Federal. Deve, portanto, haver isonomia, igualdade e unidade entre todos os Ministérios Públicos que integram o Ministério Público da União, já que o constituinte originário não elegeu nenhum ramo para alçar posição privilegiada em relação aos demais.
Cada um dos Ministérios Públicos Estaduais escolhe, por lista tríplice, dentre os integrantes da carreira, o seu Procurador-Geral de Justiça, que é nomeado pelo Governador. Já o Ministério Público da União tem por chefe o Procurador-Geral da República, escolhido dentre os integrantes da carreira, maiores de 35 anos, após a aprovação de seu nome pela maioria absoluta dos membros do Senado Federal, nomeado pelo Presidente da República, conforme o parágrafo 1º do artigo 128 da Constituição.
Tentou-se assentar, ainda na Constituinte de 1988, uma lista tríplice também para o cargo de Procurador-Geral da República, sem sucesso. Esse fato encontra-se registrado no Quadro Histórico dos Dispositivos Constitucionais da Câmara dos Deputados e subsidia a interpretação histórica como elemento adicional. Ocorre que, de 2014 até o presente, iniciou-se, à margem da lei e da Constituição da República, a realizar-se a elaboração de uma lista tríplice por entidade privada, qual seja, a Associação Nacional dos Procuradores da República, em que votam, inclusive, membros aposentados do Ministério Público Federal, em detrimento de membros do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios, Ministério Público Militar e Ministério Público do Trabalho em atividade, já que estes não votam e não são votados.
Tramitou no Congresso Nacional a Proposta de Emenda Constitucional nº 358/2005, em que se buscava modificar o artigo 128, parágrafo 1º, da Constituição Federal, de maneira a restringir o exercício do cargo de Procurador-Geral da República a um membro do Ministério Público Federal. Apenas esta informação já seria suficiente para reforçar os argumentos no sentido de que o cargo em comento pode ser ocupado por integrantes também do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios, Ministério Público Militar e Ministério Público do Trabalho. A proposta, todavia, foi arquivada ao fim da última legislatura.
A única interpretação possível de se extrair da literalidade e da essência do artigo 128, parágrafo 1º, da Constituição Federal, é aquela que outorga aos membros do Ministério Público da União, indistintamente, a possibilidade de ocupar o cargo de Procurador-Geral da República, de modo que é esta a norma que deve nortear a interpretação do tema em sede constitucional, infraconstitucional e prática.
As atribuições administrativas do Procurador-Geral da República, delineadas nos incisos do artigo 26 da Lei Complementar nº 75/93, revelam que sua atividade extrajudicial, administrativa, financeira e orçamentária diz respeito a todo o Ministério Público da União, e portanto, diretamente também ao Ministério Público do Distrito Federal e Territórios, Ministério Público Federal, Ministério Público Militar e Ministério Público do Trabalho. Quanto às suas atribuições judiciais, nota-se que elas dizem respeito a todos os ramos do Ministério Público, conforme disposição dos seus artigos 46, 47 e 48. Já em relação às suas atribuições político-jurídicas dispostas na Constituição, verifica-se que desta pode-se extrair facilmente a interpretação de que o exercício do cargo pode, e deve dar-se por membros do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios, Ministério Público Federal, Ministério Público Militar ou Ministério Público do Trabalho (confira artigos 36, inciso III, 61, “caput”, 84, parágrafo único, 103, inciso VI e parágrafo 1º, 103-B, parágrafo 6º, 109, parágrafo 5º e 130-A, inciso I).
Não bastasse tudo isso, todos os membros do Ministério Público da União estão submetidos ao mesmo regime jurídico delineado pela Lei Complementar nº 75/93, como por exemplo, provimento, posse e exercício, promoções, afastamentos, reintegração, designações, férias e licenças, vencimentos e vantagens, aposentadoria e pensão, e regime disciplinar.
Para ser apto a exercer com legitimidade o cargo de Procurador-Geral da República, há que, exclusivamente, atender aos seguintes requisitos: a) ser integrante da carreira do MPU; b) ter mais de 35 anos de idade; c) ter o nome aprovado pela maioria absoluta dos membros do Senado Federal e d) ser nomeado pelo Presidente da República.
Defende-se, neste instante, que, à semelhança do que ocorre no Supremo Tribunal Federal, no Ministério Público que junto a ele atua, deve ser prestigiada a heterogeneidade em sua composição. Beneficia-se a sociedade, com o acúmulo de conhecimento em razão da pluralidade de experiências e a oxigenação do cargo. A efetiva colocação em prática do dispositivo constitucional, através da nomeação de membros do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios, Ministério Público Militar ou Ministério Público do Trabalho para ocuparem o cargo de Procurador-Geral da República, certamente fortalecerá a unidade ministerial, e consequentemente, a defesa do regime democrático.
Antes da Constituição de 1988, o Presidente da República podia nomear o Procurador-Geral da República apenas preenchidos os requisitos de reputação ilibada e notório conhecimento jurídico. Após a Carta de 1988, exige-se que o cargo seja ocupado por alguém que integre a carreira do Ministério Público da União, desconhecendo-se na doutrina nacional qualquer posicionamento que restrinja aos membros do Ministério Público Federal o exercício do cargo.
Todos os membros do Ministério Público da União gozam das mesmas garantias e vedações comuns, e poderão assim, exercer perfeitamente o cargo com independência, imparcialidade e neutralidade, para o fortalecimento da defesa da cidadania e da sociedade, do regime democrático, do combate ao crime organizado e aos atos de improbidade administrativa, exemplificativamente.
O Ministério Público do Distrito Federal e Territórios exerce com grandeza atribuições abrangentes, já que atua em causas complexas das mais variadas matérias em região estratégica do território nacional. O Ministério Público Militar é composto por membros extremamente qualificados, atuantes em uma Justiça altamente especializada, o que permite a excelência do serviço prestado, que só cresce (em razão do aumento da criminalidade) e é por isso ampliada, como recentemente, através das Leis ns.13.491/17 e 13.774/2018. O Ministério Público do Trabalho, por sua vez, defende, incansavelmente, nas mais diversas realidades do país, os direitos sociais.
Não foi diferente a intenção do legislador ordinário. Quando a Lei Complementar nº 75/93 dispôs sobre quem deve e pode exercer o cargo de Procurador-Geral da República, assim o fez em seu artigo 25. Referido artigo encontra-se localizado no Capítulo VIII (Do Procurador-Geral da República) do Título I (Das Disposições Gerais), e não no Título II (Dos Ramos do Ministério Público da União), e tampouco no seu Capítulo I (Do Ministério Público Federal). O mesmo ocorre quando a lei alinha as atribuições do Procurador-Geral da República como Chefe do Ministério Público da União, em seu artigo 26.
Portanto, diante disso, conclui-se que algumas das atribuições do Procurador-Geral da República que foram inseridas dentro do Capítulo I (Do Ministério Público Federal) do Título II (Dos Ramos do Ministério Público da União), assim o foram por equívoco, talvez pelo fato de o Procurador-Geral da República também ser o chefe do Ministério Público Federal, conforme disposição do artigo 45 da lei em comento, já que diferentemente das outras carreiras do Ministério Público da União, não houve a criação de cargo próprio para sua chefia. A fim de sanar esse equívoco legislativo, deve o Conselho Superior do Ministério Público Federal ser presidido por um membro de sua própria carreira, ainda que o Procurador-Geral da República pertença a algum outro ramo do Ministério Público da União.
Por tudo isso, surge como conclusão inafastável o fato de que o cargo de Procurador-Geral da República pode e deve ser ocupado por integrantes de quaisquer dos Ministérios Públicos que integram o Ministério Público da União. Isso decorre do fato, sobretudo, de os dispositivos da Lei Complementar nº 75/93 precisarem ser interpretados conforme à Constituição Federal. Somente essa solução é capaz de democratizar o Ministério Público Brasileiro, amenizando a deficiência na representatividade das carreiras do Ministério Público da União, de modo a enriquecer o cargo de Procurador-Geral da República, que hoje vem sendo monopolizado, em regime de hegemonia, pelo Ministério Público Federal.

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