Na merda!

* Marco Antonio Chagas. Geólogo, professor, doutor em Gestão Ambiental

Marco Chagas

 

O princípio da não regressão em matéria ambiental surgiu para evitar que as condições ambientais que hoje desfrutamos tornem-se ainda piores, atuando como balizador da supressão ou restrição do direito fundamental das presentes e futuras gerações em ter e manter uma qualidade de vida digna. Quando se evoca as políticas ambientais urbanas predomina exatamente o contrário, a regressão.

O saneamento básico (esgoto, água e lixo), por exemplo, é assunto negligenciado pelas políticas ambientais urbanas e seus indicadores para a maioria das cidades brasileiras são semelhantes a Londres do Século XIX, época em que a capital inglesa sofreu uma epidemia de cólera que matou milhares de pessoas. “Em 1850, as casas já tinham vasos sanitários com descarga, mas o sistema de esgoto era antiquado, e dejetos humanos passavam pelas sarjetas e canos de esgoto até o rio Tâmisa — uma das principais fontes de água potável” (Almeida, 2011).

Qualquer semelhança com a atual Macapá não é mera consciência. Os atuais indicadores de saneamento da capital do Amapá são muito piores aos das principais capitais europeias do século XIX e podem responder pela maioria dos casos de superlotação da rede atendimento de saúde pública, principalmente da idade materno-infantil.

Para uma capital que apresenta praticamente 0% de cobertura de rede de esgotamento sanitário (as casas usam fossas ou lançam dejetos direto nas ruas/quintais/ressacas); desperdiça mais de 70% de agua tratada (perda no sistema de distribuição) e mantém precário manejo do lixo doméstico, a condição de vida urbana “beira” o caos e requer ações planejadas de longo prazo. Suassuna, assim alertava o povo brasileiro quanto a pouca capacidade de se indignar: – em volta do buraco, tudo é “beira”!

O Projeto Macapaba, por exemplo, construído para beneficiar populações carentes, que moram em áreas de risco, como as ressacas de Macapá, contemplou cerca de 1.000 beneficiários dentro deste critério, mas não desocupou sequer um metro quadrado de áreas de ressacas, apesar da existência de um zoneamento que deveria instruir tecnicamente o Governo para tomada de decisão. Definitivamente, razão política e a razão técnica apresentam campos divergentes quanto a interesses, conveniências e oportunidades.

O Governo Federal tem pressionado os municípios para elaboração dos Planos de Saneamento Básico, mas a única preocupação é melhorar nos ranking das estatísticas de “números de municípios com planos de saneamento elaborados”, sem que tal medida represente qualquer melhoria da qualidade dos serviços prestados à população.

As epidemias foram as grandes motivações dos investimentos em saneamento nas cidades europeias no século XIX. Por aqui, existe certa inércia política quando se fala em saneamento, chegando ao cúmulo da Justiça Federal ter que intimar os prefeitos para que tomem providência diante da total falta de saneamento das cidades do Amapá, inclusive Macapá.

Resolver o problema não é tarefa fácil, mas adiá-lo pode significar regredir direitos e voltar à época das epidemias e mortes do século XIX ou mesmo o reconhecimento da total incompetência do poder público para resolver um problema que muitas cidades equacionaram a mais de 100 anos.

Os governos estaduais e municipais devem priorizar políticas integradas de melhoria do saneamento básico e perceber que ações preventivas em saúde são mais inteligentes que medidas paliativas, por mais populistas que estas sejam. Caso contrário, estaremos aceitando com normalidade a condição de viver literalmente na “merda”.

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