Hora do almoço: memórias afetivas e gastronômicas

Foto: Acervo pessoal

O som da panela de pressão chiava sutilmente como num último respiro, se misturando ao canto de Belchior que preenche minha cabeça assim que encaro um prato vazio. “Pai na cabeceira: É hora do almoço”. Dos hábitos que perdi com a perda do meus, saber comer só foi o primeiro deles. Não que a comida tivesse perdido o sabor, mas que a refeição tivesse perdido o sentido a partir daí. 

Lembro da primeira vez que comi cuscuz sem meu pai. A frustração de não ter mais o gosto guardado na boca, agora cravado entre os dentes da memória,  umedecia a milharina de leite e lágrimas. E da religiosidade familiar que cultuava com tanta seriedade aquela cumbuca de milho sagrada nas manhãs de domingo. É que antes disso acontecer, meu avô, pai de papai, já havia me ensinado meio na marra que se a gente senta pra comer, precisa demonstrar gosta. 

 

– Gostou da manteiga não, neta?

– Gostei sim, vô Dida.

– E tá comendo pouco por quê?

 

Além da manteiga caseira, visitar o vô Dirceu em Caruaru tinha textura de bejú e cheiro doce de cajuína, refresco cristalino como na música e nos olhos claros e perdidos do velho. Um encontro que exigia de mim uma preparação ritualística de algumas horas sem comer, já que é bom que se repita o prato, não duas, mas de três pra frente. Esse era o jeito que eu, ainda criança, avisava que voltaria logo depois. 

Mas a certeza de voltar, mesmo, eu tinha com a vó Esmeralda, que morava num sítio cheio de limão de Galego lá pelos rumos da Serra do Navio. Com vovó eu aprendi que comer com as mãos tem um gosto diferente. Das coisas que guardo dela, o panelão de feijão sendo remexido como uma bruxa que mistura o caldeirão, e que magicamente, nunca faltava no prato de ninguém é a imagem clara em minha mente. O caldo por si só bastava, e se fosse para incrementar, não seria nada além de um punhado de farinha grossa.

A memória, pouco a pouco, se acomoda entre os sorrisos e brechas que alimentam e preenchem o vazio de um prato que, se antes me angustiava, hoje me enche a boca e os olhos.

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