Tia Biló: a perseverança para manter viva a memória de Julião Ramos

* Por Marileia Maciel. Jornalista e moradora do bairro do Laguinho 

“Eu tinha mamãe eu tinha, eu tinha meu passarinho, estava preso na gaiola, bateu asas e foi embora…”

Esse ladrão cantado na voz poderosa da Tia Biló chamava o povo de volta pra roda de marabaixo, por mais cansados que estivessem, porque era força e fé que saia dessa mulher, única filha de Julião Ramos que ainda vivia entre nós. Hoje ela se despediu como um passarinho, bateu asas e voou, depois de 96 anos criando filhos, netos e bisnetos, recebendo fieis e marabaixeiros em sua casa, repassando ensinamentos e contando histórias permitidas por sua memória carregada de lembranças e saudades de seus antepassados.

“Pra onde tu vais rapaz? Eu vou fazer minha morada lá pros campos do Laguinho…”

Benedita Gulilherma Ramos nasceu em Macapá, no ano de 1925, e presenciou o nascimento da cidade, brincou no antigo Largo de São João, onde as famílias negras firmaram a Vila de Santa Engrácia, dançavam o marabaixo e professavam a fé na Santíssima Trindade e Divino Espírito Santo. Quando estas famílias saíram do centro de Macapá, carregando a meninada e seus poucos pertences, tocando caixas e entoando ladrões e lamentos e começaram a ocupar onde hoje é Laguinho e Santa Rita, antes Favela, Tia Biló veio junto com o pai e mãe, Januária Simplícia Ramos e os irmãos Martinho, Joaquim, Apolinário e Felícia, iniciar a povoação deste reduto negro.

“…Eu tenho fé em Deus e na sagrada Maria, a quem Deus promete não falta, serei feliz algum dia…”

A família foi se despedindo deste mundo, e ficou tia Biló, com seus descendentes, assumindo a responsabilidade de manter o legado deixado. Ela esteve até ontem entre nós, mantendo as tradições e a fé em torno das coroas, fitas, murtas e mastros, símbolos da resistência, que fazem parte do ambiente místico da casa do mestre Julião Ramos, onde se respira ancestralidade, da frente, onde as rodas de marabaixo acontecem e os mastros são erguidos, passando pela sala, dos santos e coroas, até a cozinha, onde as refeições são preparadas e servidas durante o período do Ciclo do Marabaixo.

O oratório da sala, o radinho no quarto, os lençóis floridos, as saias e calças muito limpas e perfumadas, o panelão do caldo, as garrafas da gengibirra, as caixas coloridas, os mastros e bandeiras, azuis, brancas e vermelhas, as grandes mesas e bancos, compõem o cenário da casa que conta a história do Laguinho e dessa família que está na sexta geração. Foram 6 filhos, 15 netos, 31 bisnetos e Tia Biló ainda conheceu seu tataraneto Gabriel

Como moradora do Laguinho, vizinha de personalidades como a Tia Biló, com quem tenho a satisfação de dividir meus dias ao longo destes quase meio século de vida, sempre freqüentei os lugares que vibram nossa cultura. Curiosa, sentava e sento para ouvir e histórias, muitas viram textos, outras guardo na memória. Foram muitas horas e dias de rodas de marabaixo, anoitecendo e amanhecendo, rezando, acompanhando os rituais no Curiaú ou nas ruas do bairro, registrando, divulgando, e Tia Biló é uma de minhas personagens preferidas, assim como Mestre Pavão, Tia Fé, Naíra, Dona Diquinha, Tia Zefa, e tantos que tive e tenho a oportunidade de contar as histórias vividas com eles, ou ouvidas pelos campos do Laguinho.

Foi um grande prazer conviver, sentar ao lado, rodar a saia com a família, fotografar e ouvir esta preta velha falar e cantar, vê-la desfilando na Boêmios do Laguinho, na missa dos Quilombos, sorrindo com simpatia para as fotos, chegando para cantar os ladrões na aurora da Quinta-feira da Boa Hora. Estas lembranças são como quadros que emoldurei em minha memória, e que hoje, com a despedida de Tia Biló vieram como filme que tive a oportunidade de participar como coadjuvante, para poder contar com detalhes.

“…Já vou-me embora já ergui minha bandeira, já vou-me embora já cumpri minha missão…”

Mariléia Maciel
Fotos: Márcia do Carmo