UM CONTO DE MINAS

Robson Ribeiro de Sá

 

O Binga mora em Minas. Vive rindo. Tem um riso bem grande pregado na boca. Ganhou o apelido na escola quando narrava uma empolgante cena do filme Ben-Hur: “E aí o bandido veio em alta velocidade com a biga…” Gargalhada geral da garotada. Hilário.  Muito engraçado!  Estava corretíssimo, mas as crianças não sabiam o que era biga e a caçoada foi geral. Gozação eterna e apelido pra sempre. Depois o Biga virou Binga porque soava melhor.

 

O Binga, na infância, morava com a mãe na beira do rio quase no meio do mato perto de uma pequena plantação de verduras, numa baixada. Depois que a mãe morreu, órfão foi morar com uns tios em Correia de Almeida, distrito de Barbacena, na Zona da Mata mineira onde vive até hoje. O Binga está bem de vida, fez fortuna negociando cachaça. Cachaça de finezas artesanais que só em Minas floresce. Compra cachaça verde e forte, cabeça de alambique, no Jequitinhonha, e matura em barris de imburana. Vende cachaça boa, boa e saborosa. Cachaça pra beber em copinhos aos filetes, aos pequeninos goles para sentir a lembrança cheirosa da madeira. Salve! Quem conhece estala a língua! Sabe.

 

O Binga caiu no prazer vicioso da cachaça boa. Quando bebe, bebe muito, mas depois para e cai em depressão. Fica meses sem beber e sem por os pés na rua. Taciturno, ensimesmado e distante. Sua mulher cuida dos negócios. Quando ele está muito pálido e magro ela o obriga a sair de casa e ele vai voltando lentamente para as ruas. No início só sai nas altas da noite feito morcego pra não encontrar com ninguém. Esgueira-se de todos e vai beber só umazinha nos botequins copos-sujos mais afastados do distrito. Com o tempo ele começa a aparecer na cidade no final da tarde. Por fim, com uma aparência normal volta para luz do dia. Retoma a vida e os negócios, descobre novas cachaças finas, ganha mais dinheiro e volta a beber muito de novo.  O ciclo se repete, fica deprimido e volta a se enclausurar.

 

O Binga comprou um cavalo velho. Cansou de ser multado e preso por dirigir embriagado e não quer ter problemas quando dormir ao volante. Nas vezes que dorme “dirigindo” o cavalo, o equino o leva para casa a passos lentos pelas ruelas calmas, comuns às pequenas cidades mineiras. Uma vez bebeu demais e caiu da sela orgulhoso e elegante como uma pedra. É muito carinhoso com o cavalo, mas trata o animal como um automóvel e várias vezes quis entrar montado num lava a jato de Barbacena. Ao final do dia guarda o cavalo na garagem e baixa a porta sanfonada de aço. “Cautela”, diz o Binga. Quis instalar um alarme no cavalo, mas foi persuadido a deixar pra lá. Quando, montado no bicho, para ao lado de uma viatura policial, olha para autoridade, imita uma buzina “bii bii” e grita com a língua enrolada “Tô dirigindo embriagado” e racha de rir. Ninguém se importa, o Binga é gente boa!

 

Fica muito tempo sóbrio, cuidando do patrimônio, mas de repente volta a beber. Bebe, bebe, para e fica deprimido. Nas crises de depressão, que nunca se sabe o motivo, várias vezes tentei visitá-lo. Nunca quis me receber. Mas há uns meses aquiesceu e marcou um encontro num botequim, desses bem toscos, que existem aos montes nas cidadezinhas de Minas, e o horário foi depois das onze da noite.

 

Encontrei-o envelhecido, pálido, cadavérico e olhos amarelados, num ambiente de pouca luz. Olhou-me, não disse nenhuma palavra e apoiou os cotovelos na mesa. Pôs a cabeça entre as mãos com o rosto virado pra baixo, os dedos entre os cabelos esbranquiçados e ficou assim em silêncio por um bom tempo. Depois falou. Falou da vida, falou do tempo alegre ao lado da mãe e da ausência do pai que partiu muito cedo, das braçadas no rio e das brincadeiras de fundo de quintal com os antigos amigos de infância. Calou-se novamente, e no silêncio triste começou a assoviar baixinho uma canção da sua terra e da sua meninice doce e feliz: “Aonde tu vai rapaz por esse caminho sozinho? Vou fazer minha morada lá nos campos do laguinho eu vou fazer minha morada lá nos campos do laguinho…” A depressão do Binga  eu sei, é saudade. Saudade da antiga capital do manganês, do glorioso Território Federal do Amapá.

  • Um bom ‘causo’ é aquele que no momento da leitura o leitor se transporta para o cenário onde se passam as cenas e passa a interagir com os personagens. Ao final de “Um conto de Minas” já me sinto um pouco amigo da Binga e com uma pitada de inveja do estilo meio “pagodinho” de ser: Deixa Vida me Levar.
    Parabéns! Dr. Robson, teus contos e teus causos são como Minas Gerais…quem os conhece não esquece jamais… Até por Minas! Antonio Batista

  • Robinho sempre nos encantando com as suas doces palavras e seu modo único de contar os “causos”.Parabéns!

  • Eh, Binga…num teim jêto não, sumano. Acho que é meior você vir fazer sua morada no Amapa! Quando a sôdade aperta, da vontade de vir se plantar aqui na beira do rio Amazonas inalando a suave brisa que sopra enquanto espiamos o pessoal desembarcar o açai da zilhas na rampa do Sta Inês. Veja so: eu escrevo como se estivesse no nosso Ap, mas tô longe, bem longe… Oia bem, sumano: quando vosmicê resorvê vir pra terrinha mande um e-mail pra saber se estarei por la, ok? num quero perdê esse encontro.
    Lindo e saudoso conto!
    Bjs no seu coração, amigo!

  • Pois é Robin Zé… Nas Minas Gerais tá cheio dos “Bingas”… alguns mais, outros menos…cada um com sua particularidade.
    Um conto muito bacana!
    Parabéns!Gostei de ler…e viajar…
    um beijo da amiga Kenea

  • É o binga deve estar “mal” mesmo, porque com a “pinga e as montanhas de Minas”, ainda se lembrar de “campos do laguinho”.É brincadeira

  • Me emocionei! Que lindo!! Eu adoro minha terra. O açai, o tacacá, a maniçoba, o pato no tucupi, o vento que vem do Amazonas, a nossa música, as pessoas receptivas e bem humoradas, as amizades. Enfim, se não morasse em Macapá eu seria um “Binga”. Parabéns!Um abraço Robson.

  • Grande amigo, juro não resisti.Saudade…
    Aqui pelos caminhos do Laguinho, lembranças dos ” SCOTHs”, que a vida nos ensinou a provar. Primeiro com FLIP,lembra?
    Depois, até aquele PRESIDENT em BH…
    Como já éramos amigos e felizes.
    Deixe a vida nos levar, quem sabe o Binga vai junto.

  • Maravilhoso como tudo que vc escreve.E o Amapá é maravilhoso por isso “sabe criar seus filhos” que não o abandonam jamais..

  • Amigo Róbson. Vejo que trilhamos vários caminhos juntos: o Direito, A Banda Colossal e…as Letras. Creio que nada pior que um cabôco cum sardade di casa. Ainda que esteja perto, todo lugar é longe. Dá sardade do feijão da mamãe, dos papos de esquina, com os amigos, Dos banhos de igarapés e das pescarias de tucunarés (nm é qui rimô?). Parabéns, Róbsonnnnnnnn!

    • Cleo, com relação ao Direito e à nossa “Colossal” concordo. Quanto as letras sou só um curuminzinho iniciante rsrsrsrs.

  • Conheço o texto jurídico elegante e inteligente do meu colega Dr. Robson Sá. O conto para mim é uma novidade deliciosa, reflexo da sua brilhante inteligência . Muito Lindo. Prezada Jornalista Parabéns pelo blog.

  • Apesar do tanto que lhe conheço, você sempre consegue me surpreender. Estou muito emocionado, cara! O conto é lindo, ainda mais para mim, que passei a maior parte de minha infância no Pombal, que é um distrito de Correia de Almeida, vamos por assim dizer, onde ainda tenho um tio. Não preciso dizer quanto foi fácil para mim me ver no cenário. Mas o melhor de tudo é que o Amapá me deu um irmão de verdade. Você é demais, meu irmão.

  • Conheci o Robson no final dos anos 70.
    Nossos caminhos se cruzaram na esquina da Rua Guaíra com Agostinho Bretas.
    Parece que ele virou progressista e eu direitista.
    Abraço para você.
    CM

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