O DECRETO E A DEMOCRACIA

Por Rubem Bemerguy. Advogado

“quando se me impõe a solução de um caso jurídico ou moral, não me detenho em sondar a direção das correntes que me cercam: volto-me para dentro de mim mesmo, e dou livremente a minha opinião, agrade, ou desagrade a minorias, ou maiorias”. (cfr. Rui Barbosa “O dever do Advogado” Fundação Casa de Rui Barbosa, Ed. AIDE, 1994, pág. 43).

 

Por razões profissionais, tive acesso ao DECRETO N. 2.173 DE 05 DE JUNHO DE 2012 que “Declara situação anormal de extrema urgência e perigo público (sic), caracterizada em estado de emergência na rede pública de saúde do Estado do Amapá, requisita bens em função de risco iminente à prestação dos serviços públicos de saúde e dá outras providências”, expedido pelo governador do Amapá.

 

A motivação do impetuoso ato administrativo é, entre o que mais o seja, “que os profissionais médicos vinculados a Secretaria de Estado da Saúde anunciaram que a partir do dia 05 de junho de 2012 não mais cumpririam a escala de plantão, nas unidades de saúde pertencentes ao Estado do Amapá”. Trocando em miúdos, a ausência dos médicos plantonistas resulta, ao juízo do governo, automática periclitação ao atendimento a saúde ao ponto de autorizar que o Estado do Amapá requisite bens de particulares manu militare. (Requisitar é, em síntese, ordenar, independente do consentimento do outro, que se cumpra o que da ordem consta)

 

Portanto, se alguém, como no caso concreto, atua em medicina privada, seja lá quem for, seja pessoa física ou jurídica, já só pela existência do inconveniente decreto, independente de seu conteúdo, se meritório ou não – e não é – passa a ter sob risco a integralidade de seus bens particulares que podem, a qualquer tempo, ser inesperada e impiedosamente, tomados por agentes do Estado que, inclusive, os elegem, sem regras prévias, objeto de requisição, e isso é grave.

 

É evidente que ninguém desconhece da faculdade concedida pela Carta da República ao Estado quanto à restrição ao direito de propriedade – CF art. 5º, inc. XXII – quando verificada supremacia do interesse público. Em geral, a essa limitação administrativa se aplica a possibilidade de requisição. Entretanto, para que o emprego da requisição se tenha por válido, é preciso a ocorrência induvidosa da existência de infortúnio que ameace ocorrer a partir de acontecimentos absolutamente imprevisíveis e, justamente por isso, não é instrumento de arbítrio do administrador e nem socorro a inabilidade administrativa. Não fosse assim, qualquer governante poderia cultuar a incapacidade em qualquer área da administração pública e, constatado o caos provocado por essa incapacidade, confiscar rotineiramente bens de propriedade particular sob o pálio de iminente perigo a alguma demanda social.

 

E esse decreto, que dá para si próprio o requisito/apelido do iminente perigo, embora não o fixe com a mínima objetividade, ao confiscar bens particulares em ofensa direta a garantia fundamental da propriedade, garantia essa, pelo menos em um Estado Democrático de Direito, só derruída por fatos extremos, o faz sem a mais comezinha indenização prévia ao particular que se obriga expectador da dilapidação de seu patrimônio em nome da desmedida vontade estatal em ocultar sua inaptidão administrativa. Foi exatamente nesse contexto que o governo do Amapá confiscou bens de propriedade exclusivamente particular a partir do citado decreto.

 

Essa compreensão parece tão mais pura na medida em que, se a motivação do decreto era o não comparecimento dos médicos ao plantão em unidades de saúde e se esse aspecto já foi superado, posto que os profissionais, ao que se sabe, retornaram ao cumprimento desses trabalhos, nenhuma razão subsistiria para justificar a vigência do transgressor decreto.

 

Esse decreto indica, além do gosto pela violência, que o perigo maior não está na “situação anormal de extrema urgência e perigo público (sic), caracterizada em estado de emergência na rede pública de saúde do Estado do Amapá”, mas no comportamento do governo do Amapá ao buscar solver previsíveis adversidades administrativas, as quais há bem pouco tempo se propôs resolver, pelo conduto da truculência, da prática antidemocrática, pelo desprezo a Constituição que assegura sejam as relações sociais estabelecidas segundo mecanismos contratuais.

 

É lamentável que careça o Amapá de um fórum social organizado para que decisões como essa pudessem ser amplamente discutidas. É que hoje a atrapalhada e apressada investida – para dizer o mínimo –  está adstrita a uma atividade econômica – medicina privada – mas manhã poderá laminar, num cenário de fingidas virtudes, a qualquer um ou a todos. A biografia do Amapá não merece isso.

 

RUBEN BEMERGUY

Advogado.

 

  • Olá! Esse decreto realmente existe? Já vasculhei na internet e não o encontrei. Não sou do Amapá, mas também sou da área jurídica e fiquei interessada nos fatos que vêm ocorrendo no seu Estado. Parece-me claro que está existindo uma certa perseguição do Governo do Estado para com os médicos. Um absurdo! E quem sofre? Como sempre o povo.

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