“Norte das Águas”: ao jazz de Hobsbawn

* Roger Normando. Médico. Professor do Departamento de Cirurgia da Universidade Federal do Pará.

““O Jazz moderno não é tocado apenas por divertimento, dinheiro, ou requinte técnico: também é tocado como manifesto – seja de revolta contra o capitalismo e a cultura comercial, seja de igualdade do negro ou de qualquer outra coisa”.

Eric Hobsbawn, em: “The jazz scena”, 1989.

 

Foto: Elton Tavares
Foto: Elton Tavares

Passado 40 anos da publicação do Saint Louis Blues (1914), o jazz tornara-se, de uma maneira ou de outra, universal. Desde então passou a ser quase uma versão de segunda mão da música americana, ainda que no cartório se discuta a paternidade – apesar de avôs africanos. A versão de sua evolução e transmutação, ao contrário de sua disseminação, permanece como um tesouro mergulhado no delta do Mississipi e nem Eric Hobsbawn, famoso historiador inglês, vestido de escafandrista conseguiu localizar.

Hobsbawn (História Social do Jazz, Ed. Paz e Terra, 1989) dedilha que o Jazz moderno inicia em 1940, após a retomada da improvisação e a ruptura definitiva do blues com o pop. O blues, doravante, foi a gota inseminada no momento da fecundação do jazz, e o tal “improviso” foi gênese dessa relação assexuada.

Após a gestação, o som afro-americano (afro-humano, afrodisíaco, diz Almino Henrique) abandona o ventre, corta o cordão, enterra as secundinas do folclore e dá os primeiros passos para sair de seu gueto: New Orleans. De cara mistura-se com a música clássica; depois inicia peregrinação mundo afora para se juntar a outros elementos fonográficos e tornar-se o híbrido tanto trovejado por Louis Armstrong. Após o princípio, lá pelas quebradas do French Quartier com os negros tocando em funerais, o Jazz sobe o Mississipi no rumo norte e aporta em Chicago e Nova Iorque. Daí rodopia para o mundo até encontrar os mais insipientes rincões.

No delta do Amazonas, um desses rincões nebulizados pelo Jazz, você pode se inteirar de algumas fímbrias dessa protoplasmática história musical caminhando pela orla de Macapá. “Do blues urbano e imigrante, permaneceu o background constante da evolução do jazz” -aferiu Hobsbawn. Então porque esse background, uma espécie de miolo, néctar, não haveria de estar entre nós, nutrindo marabaixo, carimbó, batuque, boi-bumbá e outros elementos fonográficos da Amazônia dando perpetuação ao ideal de Chat Baker, Miles Davis e Duke Ellington?

Se numa quinta-feira qualquer você quiser apalpar um quinto dessa essencial história a céu aberto, – contando estrelas, ao lado de um vento brejeiro e sem chuva-, pegue a orla de Macapá e caminhe até o Araxá. Achegue ao “Norte das águas”, puxe a cadeira, sente-se e sinta-se na esquina da rue Bourbon com St. Peter street. Peça uma cerveja e um tira-gosto pro Adriano e aguarde a chegada de uma espécie de “Original Dixieland Jass Band”, nos mesmos moldes da Nova Orleans pós-Katrina, com Finéias e seus menestréis. Depois dê o formato de concha à sua mão e a encoste-as nas cartilagens da orelha. É só deleite, ou melhor: total ruptura com o capitalismo da cultura comercial.

Se numa quinta-feira qualquer você quiser apalpar um quinto dessa essencial história a céu aberto, – contando estrelas, ao lado de um vento brejeiro e sem chuva-, pegue a orla de Macapá e caminhe até o Araxá. Achegue-se ao “Norte das águas”, puxe a cadeira, sente-se e sinta-se na esquina da rue Bourbon com St. Peter street. Peça uma cerveja e um tira-gosto pro Adriano e aguarde a chegada de uma espécie de “Original Dixieland Jass Band”, nos mesmos moldes de New Orleans pós-Katrina, com Finéias e seus menestréis. Depois dê formato de concha à sua mão e a encoste-as nas cartilagens da orelha. É só deleite, ou melhor: total ruptura com o capitalismo da cultura comercial.

O “Norte das Águas”, por assim dizer, comporta-se como um verdadeiro Tin Pan Alley ao receber de abraços aberto quem deseja voar na liberdade da expressão musical, ou, no improviso e na espontaneidade de se tocar um instrumento.

Os idealizadores desse projeto são tão amarrados por esse revival, que anualmente realizam um festival neste mesmo cantinho, com diversos convidados nacionais, para manter viva essa história que os remete ao Mississipi. É claro que não se precisa de nenhum palco armado, pois a natureza foi bondosa com a cidade e deixou esse “mar” aberto e repleto de verde (I see trees of green […] What a wonderful world), dando à paisagem bucólica um ar de originalidade.

Mesmo de canoa, a ideia bem que poderia ir rio acima, nos mesmos moldes do Mississipi e borrifar jazz em toda a região. Mas aí é outra história… Já sem Hobsbawn para escrever.

 

Roger Normando – Professor do Departamento de Cirurgia da Universidade Federal do Pará.

 

 

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