A pandemia traz luto coletivo e medo da morte(o mistério da vida). Empatia e solidariedade são valores fundamentais para superação individual e coletiva

*Renata Ferraz. Psicóloga Clínica

Compreender a trajetória humana a partir da contextualização de um ciclo vital: que se inicia desde a concepção, passando pelo nascimento, pelo desenvolvimento e se encerrando na morte nos causa desconforto. Uma vez que é costumas temermos tudo o que não controlamos, e quando se trata da concepção de morte nossa reação não é diferente. Pois ao tomarmos conhecimento e consciência de que a vida possui estágios pré-determinados com prazo de validade, desencadeia-se em cada um o sofrimento psíquico proporcionado pela falta de clareza do que ocorrerá no desfecho de nossa existência humana. 

Culturalmente somos criados para realizar conquistas, vitórias e sucessos, desta forma, ao longo de nossas vidas traçamos metas e elaboramos projetos a serem concretizados a curto, médio e longo prazos. Entretanto, recebemos pouquíssimas orientações, intra e extra familiares, sobre perdas, fracassos e frustrações. Por isso, durante nossa existência, quando somos acometidos pela finitude, encontramos dificuldade para lidar com a situação, desmistificando-se então a fantasia da imortalidade e o cultivo da “eterna” juventude, que somos induzidos a crer. 

A existência da morte ainda é um dos grandes mistérios da vida, por isso a compreensão desta está muito relacionada às culturas e crenças individuais e/ou religiosas de cada pessoa, pois a percepção da morte é subjetiva e distinta. Teorias não faltam para elucidá-la, contudo, grande parte da sociedade, por medos, tabus e falta de recursos emocionais, busca sempre ignorar o assunto. Tratando-o com preconceitos, ocultando-o ou banindo-o das conversas cotidianas no contexto familiar e social.  

Entretanto, quando a sociedade, de tempos em tempos, é assolada por catástrofes epidemiológicas, tais como a COVID-19, vem à tona compulsoriamente e de forma recorrente a concretude da efemeridade da vida, já que a morte passa a ser presença mais contundente e próxima a nós, obrigando-nos a repensar a noção ilusória de liberdade e longevidade que temos sobre ela. Provocando assim, distúrbios emocionais que afetam diretamente nossa saúde mental diante de um enfrentamento, mais frequente e próximo, desta nova e dura situação de aceitar “naturalmente” tantas perdas prematuras e sucessivas de pessoas significativas em um espaço de tempo tão curto.

Frente a esta crise global que assola a sociedade diante da pandemia, fomos obrigados a confrontar a dor da perda, encarando o grande inevitável de maneira mais pungente. Processar a ideia de um adeus eterno não é fácil, principalmente quando existem palavras que ainda não foram ditas, sentimentos que não foram externados e projetos por compartilhar. A perda inesperada nos desorganiza, nos deprime e, em alguns casos, até nos impossibilita vivenciar sua elaboração, levando-nos a negar a finitude que ela nos apresenta.

Resistir ao inelutável é garantia de sofrimento, haja vista que o luto é um importante processo de readaptação diante do rompimento de vínculos afetivos, envolvendo dimensões emocionais, físicas e sociais. Na medida que ele é elaborado, restabelecemos o nosso equilíbrio psíquico e adotamos uma atitude menos traumática de sobreviver à perda. Compreende-lo é permitir que a dor exista, ou seja, “viver o luto” é imprescindível para que não passemos a “viver de luto”.  

O processo de elaboração do luto apresenta nuances bem definidas: quando a morte é algo já esperada diante de comorbidades crônicas; ou repentina quando decorre de uma pandemia como a que açoita recentemente nosso país e o mundo. O processamento da perda se configura na oportunidade de prestar a “última homenagem” ao ente querido, expressada pelo velório e sepultamento como ritual de despedida, o que gera menos desconforto do que a partida repentina, com velórios suspensos e enterros rápidos de caixões lacrados (as vezes em valas comuns), diante de uma situação caótica de medo pelo possível contágio de uma doença que pode levar a óbito outros membros da família.

A impossibilidade da realização dos rituais de “passagem” pelas formas convencionais fomenta uma série de reações ao sofrimento, além de agravar a dor, traz efeitos físicos/psíquicos indesejáveis. Essas cerimônias têm funções sociais e psicológicas importantes para a saúde do enlutado, possibilitando uma reorganização mental de seus pensamentos, crenças, significados, entendimentos e sentimentos diante da morte.

Esta situação experimentada pela sociedade, diante de um quadro de pandemia, leva-nos a compreender que jamais existirá uma maneira ou momentos “certo” para falar sobre a morte, mas é necessário que adotemos e exercitemos sentimentos de empatia, compaixão e solidariedade quando formos tratar sobre o tema. Muitos estão tendo que lidar com a perda de familiares, amigos e conhecidos da comunidade que perderam a batalha para o coronavírus. Essas mortes inesperadas são expressadas e recebidas com os mais diversos sentimentos: dor, revolta, raiva, questionamentos e fantasias de respostas que os confortem e justifiquem para si a interrupção de projetos de vidas. 

Atualmente o mundo chora as milhares de perdas, se enluta coletivamente, compartilha a angústia, o vazio, a impotência, a insegurança de seguir em frente, ajudando-nos a superar todo o sofrimento psíquico vivenciado, contribuindo para integração emocional e aceitação da elaboração do luto. 

Experimentar o sofrimento da perda e conseguir sair dele é um processo de transformação e ressignificação de vida, não há prazo determinado para que o luto se encerre, mas ele é necessário para que possamos discernir sobre a nossa existência humana e sobre nossas convicções. Processar o luto nos permite compreender que a saudade sempre fará parte da nossa história, que o vazio deixa cicatrizes nos corações, que as lembranças de momentos vividos acalentam o medo de seguir adiante, mas também nos permite descompor as lágrimas em sorrisos recordados.

Dentro deste contexto, vale ressaltar que a dor, o sofrimento, e os transtornos que acompanham o luto não são anormais. Contudo, se a intensidade disfuncional dos sintomas persistir por um período de tempo prolongado se faz necessário recorrer e se beneficiar de acompanhamento psicológico como um espaço de acolhimento e de auxílio para reestruturar as emoções, desenvolver mecanismos internos reforçadores que permitam a evolução e fortalecimento individual diante das perdas.

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