QUANDO EU MORRI

Uma crônica de Rubem Bemerguy

Era a última quarta-feira do ano e chovia muito.  Eu suava e mantinha uma permanente sensação de palidez. Também senti que o ar me era escasso e ofeguei muitas vezes. Nas vezes anteriores, em que o ar também faltou, eu me socorria dos cisnes brancos.  Como eles, eu abria minhas asas e desfiava o vento pouco a pouco até erguer-me o suficiente para atravessar a privação de viver sem ar. Não era um exercício simples, mas ter aprendido com os Cisnes foi decisivo para minha sobrevivência até a última quarta-feira do ano.

Ai, próximo às cinco horas da tarde, eu sentei em uma cadeira de balanço disposta no pátio descoberto da casa. Ali, já não mais tive forças para voltar a abrir minhas asas. Então, confiei na agitada atmosfera que acompanhava a chuva que me marinava justamente para compensar a falta que o ar fazia. Não lembro tudo. Mas Levemente eu perdia a autoridade sobre meu corpo que se inclinava para o lado esquerdo e uma dor lancinante se derramou em meu peito. Fui ao chão, em morte tardia, como há muito pressentido.

O tempo imprevisto adivinhou a morte e, aflito, demorou águas em meu corpo. O vento, já desnecessário, soprava um hálito viril em minha boca como se ainda possível guincha-me a vida. Um transitório clarão de relâmpago às vezes iluminava meu maxilar inferior caído e os olhos arregalados, como desejassem alguém que, por indulgência, os fechasse, desassustando a morte. Desejo foi algo sempre presente em minha vida, agora morta, designadamente o desejo de morrer.

Essa não foi a primeira vez em que morri. Aliás, tive muitas mortes. Algumas atrozes, difíceis de lembrar. Em todas, entretanto, eu estava amando e é por isso que sempre receei não morrer mais. Morri em segredo. No escuro do quarto. Rés a solidão. No sábado que foi. No domingo que vem. No sopro do rio que morreu no mar, eu morri. Tantas foram as vezes em que morri que por aqui pouco se ouviu falar de dor. Morri a morte que dura. Faz feliz a criatura e, às vezes, imortaliza o amor.

Mas agora era diferente. Eu estava diante de minha última morte. Não haveria outra, como dantes. Assim, mesmo não sendo um iniciante em morte, tive a oportunidade de senti-la mais profunda e definitivamente. Ela, sem cerimônia, vestiu-me de noivo. Deixou que suas tranças incolores deitassem em meu colo e pôs-se a ciciar em meus ouvidos palavras que acasalam. Recém nascidos, ziguezagueamos em fina lã até tecermos um idioma famélico de corpo e gozo. Lembro também de quase gemidos assíduos e um turvo leite gravitando em gotas e em bocas.

Aprendi muito com a morte. Aprendi, por exemplo, que existem pelo menos duas coisas que não se pode deixar de fazer depois de morrer. Uma, é passar em revista a cidade, inspecioná-la, acariciá-la nos extremos, inconfidenciar todos os traços da vida. A outra é secar as lágrimas e as corizas dos rios. Tristeza não é a consequência lógica da morte. Pelo menos da minha morte. A morte que morri estimula a vida, às vezes surda, noutras ouvida. A morte e a poesia andam tão perto, bem dizer prosa e verso. Vida. Foi assim, quando eu morri.

  • Comentei com o Rubem que depois da apnéia causada pelas avalanches de emoções expressadas neste texo, ao terminar de lê-lo consegue-se respirar profundo e ter vontade de morrer em prosa e verso, em Vida! Um abraço e parabéns pelo título concedido a você Alcilene, é sempre um carinho na alma.

  • Meu caro Ruben, agora compreendi porque você adquiriu essa CB. É da melhor qualidade, como diria o nosso famoso “Baby Doc”

  • Alcilene, visitar teu blog é sempre uma deliciosa emoção, porque encontrar preciosidades como essa crônica do meu amigo de longos e longos anos, amigo querido Ruben Bemerguy pra mim é demais, às vezes até perigoso pra esse meu coração cinquentão. Ruben amigo querido, saudade.

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