OUÇA MAMÃE – Uma crônica de Ruben Bemerguy

OUÇA MAMÃE


Mãezinha, me ouça. Desculpe a hora, mas me ouça.
Não consigo dormir sem que antes a senhora me ouça, mamãe.
Já faz alguns dias que me pego entre meias-noites e o sol nascente e eu to cansado mãe.
Me faça dormir mãe, por favor.
Se a senhora me ouvir basta. Eu durmo, mãe. Sempre foi assim.
Eu digo, mãezinha, que a senhora cultua como poucos a sabedoria de saber ouvir e ouvindo fazer dormir.
Eu lembro mãe de um tempo em que a senhora me ouvia, mesmo sem que eu dissesse uma só palavra.
De minha parte, mãe, eu escondia minha voz para ocultar minhas perigosas diabruras. Eram fugas memoráveis para o igarapé das mulheres, para o poço do mato e para o rio amazonas onde navegar equilibrando em troncos representava dançar em ondas acrobatas. Eu também gazeteava aulas para jogar futebol na Praça do Barão.
Mas mãe, mesmo escondendo minha voz, voz que escondiam as estripulias, a senhora parece que me ouvia e sabia de tudo.
Eu cismava de todo mundo, mãe. Entre nós, havia um alcaguete.
Eu desconfio que a Maria, empregada lá de casa, é quem delatava o igarapé das mulheres, o poço do mato e o rio, além das aulas que eu gazeteei. Suspeito também que o Zé, da mercearia da esquina, era cúmplice da Maria. Só o Zé sabia do igarapé das mulheres, do poço do mato, do rio e das fugas das aulas.
Se não era a Maria, se o Zé também não era cúmplice da Maria, eu confirmo minha convicção de que a senhora era mesmo uma feiticeira mãe. Quase bruxa.
Agora imagine mãe: se eu tivesse guardado o igarapé das mulheres no guarda-roupas do meu quarto; se eu tivesse guardado o poço do mato embaixo da minha cama; se eu tivesse guardado o rio nos meus olhos; se eu tivesse permanecido gazeteando aulas para jogar futebol!
Mãe, o igarapé das mulheres hoje estaria intacto. O igarapé, as mulheres, as roupas, as músicas, as tradições e a alegria do igarapé.
O poço do mato não seria, como hoje, porque nunca foi, um simples poço. Imagine, mãe, passar pelo poço do mato como passam agora as pessoas. Indiferentes, apressadas e sequer o reconhecem. Um crime mãe. A senhora nem acredita. Mãe, eu reverenciava o poço do mato e ainda hoje o reverencio. Era o poço de meus segredos. Esses segredos eu não contava nem para o Zé, da mercearia da esquina.
O Rio amazonas, se eu o tivesse guardado nos meus olhos, não teria sido atolado de barro. Não seria diminuído por homens maus. O rio seria o mesmo rio, mãe.
Mãe, quanto as aulas que gazeteei para jogar futebol, tenho pra mim que foi um erro seu desestimular essa prática. Mãe, hoje eu poderia ser um Cristiano Ronaldo! Acho, sinceramente, que nesse quesito a senhora mandou mal!
Ah, mãe, se o tempo voltasse. Se o tempo voltasse, mãe!
Mas, ouça só um pouquinho mais, mãe.
É que tudo o que contei tira meu sono, mãe.
Mas tem outra coisa que não está me deixando dormir.
É que, como a senhora sabe, o Wagner, um amigo meu que é advogado aqui no Amapá e que, inclusive, foi presidente da OAB, um homem do bem, me convidou para concorrer ao Senado Federal nessas eleições.
O Wagner será candidato a Senador e eu provavelmente a seu suplente, com muita honra. Então, mãe, diante dessa realidade possível eu passei a estudar o Estado do Amapá.
Estudos por índices estatísticos. É que, se me proponho a contribuir, eu preciso conhecer as entranhas do Estado e isso só se alcança a partir dos índices, a senhora não acha mãe?
Ouça isso, mãe:
Somente 4 em cada 100 habitantes no Amapá contam com rede de esgoto, mãe. Talvez o pior índice do país em termos de saneamento básico. Básico, mãe. Uma crueldade.
A pobreza aqui, mãe, passou de 6,54% para 13,42% da população. Dobrou em um ano, mãe. São inúmeras pessoas sobrevivendo com menos de R$ 5,50 por dia, mãe. É fome, mãe. Fome mesmo.
Mãe, Macapá e Santana, os dois maiores municípios do Estado, aparecem entre as cidades mais violentas do mundo. Mãe, não são entre as cidades do Brasil, mas do mundo. Um horror.
O Amapá, mãe, foi o Estado com a maior taxa de desemprego do Brasil em 2017: 17,7% de desempregados.
O índice de mortalidade infantil é de 23,45%. Isso quer dizer, mãe, que em cada mil nascidos aqui, 23,2 bebês podem não completar um ano de vida. Tragédia humanitária.
Esses são só alguns dados, mãe. A intensidade da miséria social é escancarada.
Mãe, isso, para mim, não é determinismo.
Mãe isso é parte de um movimento político que cultua a desigualdade para perpetuar o poder. E aí, poucos têm muito e muitos não têm nada ou quase nada.
E, pior, eles, os que produzem e sustentam a desigualdade, a miséria mesmo, querem fazer parecer que a vida tem que ser assim.
Não, não tem que ser assim mãe.
E eu reparo, entretanto, uma coisa curiosa, mãe. Quem produz os políticos que produzem essas políticas são justamente as pessoas que suportam as consequências da política que os políticos fazem.
É dizer, mãe: as pessoas humildes que não tem hospital nem escola, que não acessam ao básico saneamento, que não tem emprego e que não tem quase nada, não se apercebem que seus votos seriam e são determinantes para alterar essa realidade.
Essas pessoas, por ingenuidade, imaginam que todos que se dispõe a fazer política são iguais. Imaginam, suponho, que não existem pessoas honestas em política. Essa lógica, mãe, reproduz indefinidamente a penúria social.
Eu acho que a falta de discernimento é tamanha, que acho que existem pessoas que acham que ninguém se importa com a dor delas e que a dor delas não é também a dor do outro.
Vivo um enorme dilema, mãe.
É por isso que vivo entre meias-noites e o sol nascente e não consigo dormir.
Mas agora que a senhora me escutou, mãe, eu sinto sono. Muito sono, mãe.
Vou dormir mãezinha.
Obrigado, mãe, por me ouvir outra vez.
Boa noite, mãe.

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