O RASGADOR DE LETRAS

RUBEN BEMERGUY

Cruzeiro

Sou o único destinatário das coisas que escrevo e também das que não escrevo. As que escrevo, não leio. As que não escrevo, dedico tempo juntando letras imaginárias  aqui e acolá, até ter ideia clara das cores predominantes em cada uma delas.  Depois as rasgo. Elas gotejam, como padecessem de desmedida dor moral. Sinto que elas – as letras – não perdoam minha inclemência, mas é assim que me omito de mim e sofro um pouco menos exatamente por não me conhecer, gravado ou não em papel.

Ignoro-me não por pesar, mas por amor. Meu grau de proximidade comigo, um certo sentimento de tolerância mesmo, está na precisa distância que de mim estabeleço. Não sei de meus olhos ou do revestimento de minha pele. Acuso apenas a noção de minhas unhas. Delas, não posso prescindir. Não só por ser rasgador de letras, mas também pela necessidade de laminar frequentemente grande porção da vida.

Assim, dela, – da vida -, obstinadamente, dilacero de um tudo. De mim, sobra pouco. Esse resto trago empilhado na zona mais afiada das unhas, como se prestes a feri-lo ao mais tímido indício de remorso de ainda conservar algo de mim.

Nessa escuridão permanece o que de tenra idade ainda tenho: uma ginjeira uma rabiola, um bem-te-vi, a primeira sessão de domingo no cine Macapá, um pedaço de menta, uma revista do Tio Patinhas e outra do Mandrake, um conga azul e um vulcabrás preto, um gol perdido, uma monareta, o Tio Casemiro, Seu Banha e um avião cruzeiro do sul, um pouco de extrato de alfazema, dois vinis: um Long Play e um Compact disc, um rabino distante e uma prece, alguns quebrantos, meio retrato onde não mais me pareço e um segredo. Isso é tudo que ainda me acompanha.

Compareço ao meu encontro a cada segundo. Arrumo e desarrumo na prateleira do vento isso tudo e depois, freneticamente, torno ao arquivo morto. Em seguida, volto ao ponto de partida. Sou assim.

Só não toco no segredo. Tenho medo. Ele, a ninguém deve ser dito. Muito menos a mim. Fico a imaginar se o descubro descalço e se seus pés decidem percorrer meu tronco em tênue intensidade?. Se o descubro sem túnica e se seu corpo é bordado e se me põe em cerco militar e se minha infantaria a ele adere e se ele me escraviza?. Se o descubro a articular outros segredos em meus ouvidos pastos?. Se o descubro Cacique e se ele em círculos me canta e se seu arco arremessa uma flecha e se a flecha me vaza e se, por um lapso, eu gozar?. Não. Nesse segredo eu não toco. Tenho medo.

O medo sincero é a mais gentil e sublime virtude de qualquer rasgador de letras. Mas não basta ter medo. É preciso também falar baixo. Bem baixinho, pra não excitar o segredo. Em mim, ele – o segredo – dorme, mas tem sono leve e isso é um risco permanente. Minha melhor porção o embala e o vigia, sem tréguas.

Sob o ângulo da vida, pareço louco. Ela – a vida – teima em nunca resignar-se a arquitetura dos que laceram letras. Dai, me quer em holocausto. Contra mim, imputa falsamente versos que nunca fiz, músicas que jamais ouvi, danças que nunca passei, beijos que não guardei.

Eu, na quietude da mais serena convicção, nada faço. Se o segredo dorme, me basta. À vida, apenas digo: não me doce, nem me salgue. Me alme.

Monareta.
Monareta.
  • Nossa! Taí! Você acabou de desvendar um segredo escondido de mim: uma bela escrita e gostosa leitura. Tem mais? Quero, exijo a publicação dela. Ja tens uma fã. Temos tantos talentos em Macapa e isso me enche de orgulho pela minha terra. Parabéns !

  • Bem, eu conheco o Ruben, meu mano, meu velho e filho de Abraham Avinu como eu. Às vezes percebo que em meio a conversas ele parece viajar, ele da um “time” e, segundos depois, volta à realidade, essa postura para muitos parece meio que anormal, todavia, somente um pensador, é portador,de tamanha percepção,sutileza, doçura e com a cultura, em tratar não só com as letras mas com pensamento. Mas, o que mais me encanta, é o que ele decanta, e nos leva através do túnel do tempo, reviver tempos que por certo o tempo não trará jamais, mas como numa chance imerecida, na pessoa do Ruben, ele, o tempo, nos brinda com lembraças inesquecíveis ao longo do viver.
    Que saudades do conga azul ou branco de pontinha de borracha,do Tio Patinhas, do Zé Carioca, do Pato Donald, da Alfazema após o banho, do vulcabrás ou mesmo ou passo doble, do Mandrake ou do Fantasma, do Pasquim o do MAD, que saudades!!!
    Percebo no texto, um autor menino, que se pudesse, nunca o teria deixado de ser, que mesmo em meio ao turbilhão da vida adulta, mas não se furta a ter consigo o menino que nunca deixou de existir dentro de sí.
    Rubão!!! pudera a vida nos tornar imortais e nunca morrermos, mas vivermos sempre, pois tê-lo como irmão, por certo é das coisas mais belas que D´us me permitiu ter nessa existência. Seu texto é digno de uma prova de vestibular, pois ele nos leva pensar, a vasculhar os escaninhos da mente do autor, de sorte a entender que o medo é algo que todos nós temos, mas o melhor e não mexer com ele,de sorte a não excitar o segredo, e mesmo que louco pareças, no entanto louco são os que perdem por não te conhecer, e descobrir o ser humano, maravilhoso que és em tua essência.
    Parabéns pela forma como vc., “Rasga as Letras.”
    Com o meu sincero Shalom.
    Um beijo no teu coração.
    Yossef.

  • Esta face do Ruben em nada me surpreende, pois ao longos dos anos em que trabalhamos juntos, isto é, quase 12 anos, venho guardando dezenas de obras em meu arquivo, sou uma espécie de fiel depositário, um curador de poesias e crônicas esperando o parto, embora não tenha sua permissão, ás vezes brinco e digo que irei publicá-las como se o autor fosse. A brincadeira tem como propósito mostrar-lhe que não tem ele o direito de ser o único destinatário das coisas que escreve.

  • Ruben,
    Tá lindo seu texto,sabia? Já estava bom, ficou melhor.
    É isso…rasgador de letras tem que ter paciência… tirar os matinhos do texto, limpar até ficar só o essencial. Acho que é o Quintana que fala em um poema sobre esta arte de lidar com as palavras.
    O senhor precisa ser “menos DIREITO” e mais LITERATURA”
    Ângela de Carvalho

  • Parabéns Ruben!
    Bela crônica, usei conguinha azul, sapato vulcabrás e ia de monareta pra escola, na Vila Amazonas!
    Abç!

  • Que pena que é JEAN e não GEANE (me desculpem o trocadilho) o curador de suas crônicas e poesias… Não havia lido nada escrito por Ruben mas fiquei encantada! Ia pensando que já chegamos a dezembro de 2010, quando de repente com essa leitura volto no tempo e me vejo menina nos idos de 1978,1980… E quem camarada, não tem um segredo que assusta e impulsiona? * Mas louco é quem me diz e não é feliz!

  • Meu Amigo!!! Vc deve ir deixando o DIREITO um pouco e se dedicar mais ao que vc sabe fazer muito bem, colocar um pouco de suavidade em nossas vidas.
    Lembra das janelas da SEED cheias de poesias e poemas? Foi vc.

  • Foto boing B-727 da cruzeiro que realizava flt com comfigurações de 112 passageiros,Laurindo Banha era grande chefe lcl

  • Esta é mais uma das inúmeras belas crônicas do velho Ruben. Nós, amigos, deveriamos fazer um movimento para o que ele reunisse todas as suas crônicas em um Livro. A literatura amapaense e brasileira agradeceriam. Lindo texto Velho. Wellington

  • Ao invés de “rasgar letras” (rs), tento em humilde vocabulário juntar letras, formar palavras ou escrever uma frase que defina o quão precioso é este texto. Valeu Filho!!!

  • Ei velho, aqui e seu velho parceiro “PATO” Do GM, onde muitas vezes eramos obrigados a estudar a atarde toda em sua casa para fazer uma prova da Professora HELENA ou LUCILIA, rigorosas mestras do nosso rico português – E por isso vejo hoje que VC aprendeus, BLZ.

    Que Deus Lhe Abencoe na sua vida e imortalize essa cabeça.

    ABs

  • O cara esconde, esconde e esconde. Mas escrever é compulsão. Lá um dia o texto encontra a porta entreaberta e como um cachorrinho danado zune pelas ruas do mundo e não dá mais pra alcançar. Revivi muitas coisas neste teu texto. Lindo! Lindo! Lindo! Um grande abraço meu amigo.

    Alcilene vive nos presenteando com essas surpresas maravilhosas!

  • Valeu, grande, por oportunizar-nos com este deleite de texto. É como lhe ouvir pessoalmente. Mata um pouco da distância.Emocionante. Valeu!

  • Alma nobre, nem tanto transparente, mas transborda elegância no deslize das letras. A crônica é simplesmente bela e vc, Ruben, não deve parar por ai. Por favor nos mimosei mais com suas crônicas e seus contos. Adoro as letras de suas músicas e acredito que podem ultrapassar as fronteiras do Rio Amazonas.

  • Que ensaio mais intimista meu amigo-irmão. Sinto-me parte de teus devaneios tão magnificos. Parabéns!!! Espero que voce se motive mais nessas belas viagens literárias. Que o Altíssimo cubra de paz esta tua tão bela ALMA.

  • Confesso que já admirava a atuação do Ruben na seara jurídica e, agora, mais do que nunca, estou convicto que sua capacidade intelectual não possui limites… Parabéns!

  • Ruben,
    achei bom o seu texto. Gostei particularmente das “unhas” e do trecho em que você revela não mexer no segredo. A gente começa no tom confessional, depois arrisca sair da pessoa. Continue escrevendo, não há mal nenhum em arejar a memória e a vida.

  • Já conheço o talento literário do meu amigo Ruben. Este texto é ótimo, revela que o autor sabe “mexer” com as palavras. Não adianta, escrever é expor-se às multifárias leituras(do próprio autor, dos amigos, de outros), é arriscar-se a “mexer” os segredos, mesmo que não queira, mesmo que se fale baixo. Ele – o segredo – se revela sob os incêndios (ou seriam as ruínas?) da memória. Parabéns, amigo, você não irá inflacionar, com certeza, o mercado dos maus escritores!

  • A primeira versão desse texto, traduzi aqui para o francês e mostrei a duas amigas. Elas me pediram a tradução das próximas, pois gostaram muito e ficaram bastante impressionadas com a sua maneira de escrever. Espero que ele escreva outros e me mande. Adoro tudo que ele escreve.

  • “Ruben, quantas lembranças voce nos traz. Fiquei emocionada ao ver a foto da monareta. Vem a minha memória os passeios da tarde (Hortência, Naza Leitão, Eliana Leitão, Elma Calvalcante, Lorena, Lívia e outras amigas). Tocou fundo meu coração. Parabéns!!!

  • LI HOJE COMO SEMPRE LEIO O BLOG E DEPAREI COM ESTA PEROLA. UMA CRONICA DIGNA DE ESTAR ENTRE AS MAIS BELAS CRONICAS ESCRITAS EM NOSSO BOM PORTUGUES. SER BOM VAI ALEM DE ESTAR BOM.
    LUIZ JORGE. OSASCO SÃO PAULO BRASIL.

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