A Pietá de Bailique

* Roger Normando. É médico, poeta e cronista.

Bailique fica nos cafundós do mundo: acima da linha do equador, na curva do rio Amazonas com o Atlântico. Lá mora Jesus, 14 anos, filho único de um casal em perfeita harmonia. Em lua de quarto-crescente ele saiu escondido da mãe para caçar com a espingarda do pai, que saíra para pescar. Jesus não sabia que na escuridão da mata o ponteiro da hora não se mexe; ignora prestígio de homem e sedução de caçadores vis.

A mãe despertou cedo, viu a floresta ganhar seus matizes da aurora sem as cores de Jesus na sua rede. Ao dar por falta do menino achou de ir à caça. Saiu abrindo picada pela mata fechada. Avistou o filho ensanguentado na cabeça, com respiração ofegante e desacordado-quase-morto, próximo a um córrego onde Catitus lambiam o sangue diluído na água. Disparo acidental, pensou. Aos berros, clamou pela vizinhança. Acudiram-na, colocaram no barco a motor e partiram no prumo de Macapá.

A viagem durou 12 horas. A mãe por todo tempo apoiou o filho no colo, feito a Pietá de Michelangelo, e se desesperançou ao ver que a paisagem se desbotava a cada hora carcomida pelo barulho do motor. A extrema-unção lhe parecia chegar antes daquele cais.

Era boca da noite quando aportaram e foram direto ao centro cirúrgico para abrirem-lhe o crânio e expurgar coágulos e estilhaços. A operação varou a noite.

Após três longos meses em CTI, Jesus desperta milagrosamente, porém com sequela respiratória. Aí que entramos na história.

Chegamos com dois palmos de paciência, pois Jesus tornou-se agressivo e a mãe-Pietá via-se deprimida diante daquela respiração estridente e aquele estranho cano de plástico no pescoço, por onde respirava. Disse-nos que até suicídio ele tentou, quando certa noite foi encontrado dependurado na janela do hospital. No outro dia mãe-Pietá estava chorosa, querendo abandonar tudo e pegar o rumo de casa, pois saíra sem se despedir do marido e já achava aquilo tudo um milagre dos céus.

Confessou-me que um douto havia dito que só restaria usar prótese importada ou manter a traqueostomia, pois o caso era perdido. Pedimos que ela revisse com carinho e tomasse a melhor decisão para enfrentarmos o desafio de corrigir, a bisturi, o estreitamento da traqueia, caso contrário, nunca mais Jesus poderia mergulhar no rio, dado o risco de entrar água pelo cano do pescoço e afogar os pulmões. Diante do exposto, a mãe ficou reflexiva…

Depois da confiança depositada em suaves prestações, acabamos realizando a operação e, apesar de algumas pequenas reintervenções endoscópicas – algumas delas com fortes emoções – Jesus ficou bem e teve alta no 15º mês. Isso mesmo: um ano e três meses. Ele passou dois aniversários no hospital.

Antes do regresso a mãe tirou fotos de um celular emprestado. Eu e ele fazíamos pose para comemorar: Era sina de Jesus e Pietá e a minha frágil sensação de servirmos para alguma coisa.

Depois de dois anos eles retornaram ao ambulatório. Quando o reencontrei, confesso, não reconheci. Jesus estava bem mais taludo. Segundo a mãe, por conta do açaí: “fruta santa, fruta mártir”, nos dizeres do poeta. Deram-me um abraço com dose extra-forte de emoção e músculo. Jesus voltou a caçar, pescar, tomar banho de rio e até trepar no açaizeiro com peconha. Numa pescaria foi mordido por arraia, perdeu-se no caminho de volta e quase mata a mãe de susto.

Pietá disse-me ainda que, durante aquele suplício, o marido se enrabichou com uma “pequena” de outra ilha e pôs fim à família, pois ninguém naqueles confins de mundo acreditava na ressurreição daquele menino Jesus.

** Com citações de Joãozinho Gomes e Michelângelo Buonarroti

  • Dr Roger Normando, um homem sábio em todos os sentidos. Minha mãe tb é sua paciente. Hj teve alta por cura de um CA. Abaixo de Deus eu e minha família temos muito o que agradecer a vc. Lendo a história de Jesus, me recordei a uma frase sua “né que a gente serve pra alguma coisa”. Tal frase me marcou muito, pois sei que você ajuda muito mais do que recebe em termos financeiros. Tenho muito respeito pelo profissional que vc é.

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